Uma leitura dos filmes Belladonna of Sadness (Eiichi Yamamoto, Japan, 1973) e Possession (Andrzej Zulawski, Germany-France, 1981)
1- Sumário: Resumo
Às vezes, é difícil pôr em palavras exatas o terror de não ter direito ao seu próprio corpo, ainda mais, sendo uma mulher.
Tudo nos gêneros do body horror e da possessão demoníaca, durante décadas, se guiou na ideia do ser humano (mulheres, principalmente) que não possui o próprio corpo. A hipocrisia ocorre quando essa mulher possui seu corpo por vontade própria, seja sexual ou socialmente, e subitamente ela é demonizada pela sociedade patriarcal. Pode-se citar vários exemplos do cinema de horror clássico, como The Fly (David Cronenberg, 1986), Rosemary’s Baby (Roman Polanski, 1968), O exorcista (Willian Friedkin, 1973), entre outros tantos que, coincidentemente, se encaixam no conceito da mulher privada de seu próprio corpo.
Nesse ensaio, serão feitos paralelos entre dois filmes de horror e seus usos de linguagem cinematográfica subversiva dentro do cinema experimental. Serão os filmes: o primeiro, Belladonna of Sadness (Eiichi Yamamoto, Japan, 1973), uma animação japonesa experimental, que conta com fotogramas em aquarela e guache que contrastam com o horror e incoerência proposital de sua narrativa, uma fantasmagórica epopéia feminista e o segundo, Possession , dirigido por Andrzej Zulawski e lançado em 1981, com cenas viscerais de body horror que jamais conseguirão ser replicadas nem no mais chronenbergiano dos sonhos, numa narrativa densa que segue um casal que deseja o divórcio e a imersão da protagonista numa jornada de desespero e confusão mental.
O objetivo é interpretar alguns dos pontos de transgressão das obras, observados tanto em suas narrativas não convencionais quanto em seus usos de linguagem cinematográfica cheios de trocadilhos visuais e imagens subconscientes.
Palavras chave: artes, cinema, montagem e edição, possessão demoníaca, feminismo
2- INTRODUÇÃO: SER MULHER É PERIGOSO
Dentro de um enredo de violência e pressão social se desenvolvem os filmes Belladonna of Sadness e Possession. A possessão demoníaca vem como alegoria narrativa, pois fica evidente o caráter de denúncia feminista das obras.
O realismo no roteiro escrito (através de de uma descrição cronológica) e visual não é uma opção para descrever o pesadelo que essas personagens vivem em seus respectivos universos. Melhor dizendo, o uso de metáforas é comum para concretizar essas narrativas, com uso de imagens atávicas e conceitos do subconsciente humano relacionadas à morte, ao nascimento, ao sexo e à acontecimentos ritualísticos.
Logo nos sete primeiros minutos de tela, Belladonna of Sadness vem deixar clara ao espectador a brutalidade e obcenidade a que veio: Jeanne, sua protagonista, é violada sexualmente em cenas semi explícitas que subvertem a violência sexual, de maneira que a deixa ainda mais incômoda de ser vista em aquarela: a surpresa está no fato de que a cena não deixa de ser cruel e agonizante por estar representada numa técnica sutil. A trilha de música envolvente de órgão setentista é subitamente interrompida por um grito gutural de Jeanne, que não tem para onde correr, muito menos o espectador, que fica imerso na dimensão sensorial criada no filme. O tempo todo, durante a violação, Jeanne é interrogada se é casta, pois, senão o fosse, jamais poderia se casar. Essa sequência aumenta a certeza do espectador sobre a hipocrisia das autoridades desse universo.
Jeanne permanece, durante toda a narrativa, lutando para viver sua feminilidade e sexualidade por completo, sendo sempre combatida pelos governantes da vila, que a desejam morta. Jeanne é vista como uma bruxa subversiva, pois, além de ser muito bonita e auxiliar as camponesas da vila a ter menos filhos, há o boato de que ela fez um pacto com o diabo. Jeanne de fato fez um pacto com o diabo, mas fica claro para o espectador que o diabo é a própria Jeanne em sua busca por uma expressão livre de sua feminilidade e posse completa de seu corpo.
Ainda nesse contexto de violências contra a mulher, Possession aborda de maneira inexplícita a violência doméstica que a protagonista Ana, interpretada por Isabelle Adjani, sofre com seu marido Mark. A loucura do casal se constrói para o espectador através de metáforas visuais sobre violência sexual (como na cena do metrô que será desenvolvida à frente) e da pressão de Mark sobre Ana para que ela se torne uma esposa que jamais foi, nem será: ele quer que ela fique em casa, cuidando unicamente de seus afazeres como mãe e provedora de um sexo que o satisfaça no final da noite. Ana busca sua autonomia (física e social), inicialmente através de outro parceiro, Heinrich, que a valoriza em sua individualidade e a satisfaz sexualmente. Porém, conforme a narrativa se desenvolve, surge um novo personagem: uma criatura que materializa tanto o desejo de Ana por uma nova vida, longe de Mark e de uma família que exige dela um repertório emocional que não pode oferecer, quanto o desejo mórbido de Mark em possuir uma esposa gentil e caseira.
3- DESENVOLVIMENTO
3.1 — POR QUE SÃO SEMPRE AS MULHERES AS POSSUÍDAS?
O horror, como gênero, na tentativa de irritar e amedrontar seus espectadores, geralmente opera fora dos códigos formais estabelecidos na indústria cinematográfica, e isto ocorre até mesmo em filmes de terror e horror mainstream. Diante desse fato, o horror tem a possibilidade de subverter padrões narrativos e estéticos a fim de questionar posições de gênero e sexualidade na sociedade. Há uma tendência em retratar personagens e histórias fora dessa visão normativa de sexo e gênero. No entanto, mesmo tendo esse potencial progressista, o horror pode seguir satisfazendo visões hétero e cisnormativas em suas narrativas como forma de afirmar a submissão de algumas pessoas e raças em relação à outras.
No subgênero do oculto, onde há a possessão (atenção ao “posse”) há a reafirmação da posição de submissão predominantemente feminina como um corpo que é incapaz de se autogerir, um corpo chamado para ser observado e manipulado dentro da narrativa. E, ainda: nem sempre o “demônio” nas narrativas é de fato um “demônio”. Podem ser espíritos vingativos, que vêm ao corpo e à vida dessa mulher (que pode ou não ser a protagonista) como forma de controle e punição. Essa punição comumente advém do fato que a mulher afetada pelo demônio é livre, seja sexual, social ou financeiramente. Fica subentendido que essa liberdade “indevida” da personagem pode ter atraído o mal para sua vida como forma de pôr as coisas no lugar. Foucault fala em sua obra Microfísica do Poder: quando a parte dominadora não dá sequer a possibilidade de fuga ou barganha à parte submissa da relação, não há uma relação de poder válida, muito menos individuação dos sujeitos. Jeanne, do longa japonês, nesse contexto, é tão oprimida que não tem para onde correr se não para dentro de sua própria mente.
O salvador dessa personagem atormentada é quase sempre um homem: um padre que a redime através de um exorcismo ou outro ritual semelhante. Em “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, a teórica feminista e marxista Laura Mulvey busca na psicanálise os conceitos para formular uma crítica social à imagem e ao consumo, sobretudo à imagem produzida no contexto da indústria capitalista hollywoodiana como um produto da predominância do olhar masculino hétero e cis, produto este que corresponderia à imagem da mulher como objeto passivo desse male gaze. A teoria psicanalítica é utilizada como uma arma política para desmascarar os meios como “o inconsciente da sociedade patriarcal ajuda a estruturar a forma do cinema”.
O cinema experimental vem com um potencial infinito de lidar com as questões que são objetivamente negadas pela indústria mainstream através da subversão da visão sobre narrativas e corpos de minorias.
A teoria da morte do autor, cunhada inicialmente por Barthes, Foucault e Derrida propõe que, assim que o autor põe no papel ou idealiza concretamente seus conceitos que uma vez foram somente ideias, não há mais autor, pois a leitura da obra está aberta para todos interpretarem fora da “caixinha” estabelecida pelo autor. Melhor dizendo: assim que algo é narrado apenas com o objetivo da prática simbólica, a voz inicial perde a sua origem e o autor entra na sua própria morte como indivíduo artístico. Isso ocorre dentro do terror no seguinte contexto: muitas obras vistas inicialmente como machistas, datadas, patriarcais, racistas, nazistas, de mau gosto (a lista não acaba), acabam por ser ressignificadas, como pode ser visto tanto em Possession quanto em Belladonna of Sadness.
É na sutileza que se encontra a potência de Belladonna of Sadness e Possession . A autonomia sexual, individual e financeira vem como um divisor de águas para mostrar o contexto feminista nos filmes: tanto Jeanne quanto Ana procuram essa autonomia para que possam se expressar de maneira natural, fora da normatividade patriarcal.
Seus corpos são chamados a serem observados por serem corpos subversivos, logo, dignos de punição. Jeanne é independente e tem conhecimento sobre o controle de natalidade, Ana busca ser mais que uma mãe e esposa exemplar, ela busca vida de individualidade e espontaneidade fora de um casamento.
A imagem social da mulher está sempre em constante processo de reformulação. A escritora feminista inglesa Virginia Woolf destaca em seu ensaio Um teto todo seu a importância da autonomia financeira na vida da mulher, corroborando argumentos com experiências de sua vida como mulher intelectual no século XIX. Woolf reitera que as mulheres têm servido há séculos como espelhos, “com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural”. A mulher nos filmes de possessão (como corpo, pois não é lida como indivíduo) é vista como uma porta para a mudança do restante dos personagens ou do universo em que está inserida.
3.2 — SÍMBOLOS INCONSCIENTES E A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA
A diluição ou a completa rejeição da narrativa e do realismo figurativo convencional é algo frequente e cada dia mais comum dentro não só do horror experimental, como também do cinema contemporâneo como um todo. A narrativa não consegue abarcar toda a comunicação necessária que deve acontecer entre o autor e o espectador: a adoção de uma cronologia rígida, de um naturalismo extremo ou plots lineares muitas vezes mais atrapalham que auxiliam na contação da história em questão. Quando a narrativa realista não retrata a sensação desejada, a alegoria vem para satisfazer a ânsia de contar algo — a alegoria, ou metáfora vem nesses filmes como um exemplo claro de transgressão. A transgressão à sociedade paternalista ocorre nesse contexto quando ideias ou imagens subconscientes e íntimas são retratadas, tocadas ou ressignificadas na tela de cinema.
No longa franco-alemão é estabelecido um jogo lógico e cronológico muito próprio, onde causas e consequências são bem instituídas apenas em momentos muito específicos de ação. A tentativa de criar um universo inteiramente decifrável, coerente e inequívoco não existe na experimentação vista nas duas obras. Ana é como um espelho para Mark, que se projeta nela o tempo todo, procurando uma esposa que seja tão puritana e servil quanto ele. No meio do longa, o espectador vê o nascimento de uma criatura diabólica suja e sem forma, que materializa os desejos mais profundos dos protagonistas. Mark morre e tem seu local tomado pela criatura, que se torna o esposo servil e obcecado por Ana, que, por sua vez, é substituída pela professora doppelgänger que era a projeção perfeita da esposa calma e submissa que Mark desejava desde o início da narrativa. No final, quando o monstro volta para a casa (depois que Anna e Mark são mortos) o filho do casal implora a Helen (a professora doppelgänger) que não abra a porta. Neste momento, não fica claro se o menino sabia o terror que viria e se matou afogado na banheira, ou se ele apenas desapareceu — o marido e a mulher “idealizados” estão se reunindo e existindo da única maneira que poderiam, que é sem o filho, uma criança tida com objetivos de puro padrão normativo social.. O menino sente que é um casamento condenado, pois ele já conhece os problemas de sua vida familiar. Esse é o significado simbólico por trás desse universo do filme: eles são uma unidade familiar disfuncional destinada a se prolongar e terminar de forma destrutiva. Nada aqui é literal: há uma exploração estética simbólica e sugestiva muito bem feita para que haja essa sensação de enevoamento mental. O espectador tem a impressão de estar presenciando o pesadelo de alguém durante toda a exibição do filme. Como dito, tudo é alegórico.
Jeanne, em Belladonna of Sadness é o espelho para uma sociedade feudal adoecida pelo machismo, violência, fome, crime e demais problemáticas relacionadas à classe. O colunista Renato Janine fala sobre a existência de bodes expiatórios, como foi o caso de Jeanne na narrativa do longa japonês: “A civilização não pode aceitar esse tipo de conduta. Mas, para isso, ela precisa oferecer perspectivas às pessoas. Se não, você vai ter sempre pessoas miseráveis que vão culpar outras pessoas miseráveis por suas desgraças em vez de procurar o verdadeiro inimigo.”
3.2.1 — ESTILOS DE ANIMAÇÃO E FOTOGRAFIA
A protagonista de Belladonna of Sadness nunca desfruta de um único momento de sexo verdadeiramente consensual. Em vez disso, há muitas cenas de abuso, tanto feitas pelo rei ou clérigo da sociedade em questão quanto por seu esposo. Muita violência sexual é mostrada de maneira expressionista, mas esse expressionismo abstrato e obceno se torna mais inesquecível quando o corpo de Jeanne é rasgado ao meio enquanto ela está sendo estuprada: a partir dessa cena, fica evidente para o espectador atento que o método de animação aqui é importante. Esses momentos são angustiantes e transmitem uma sensação de violação: a forma ágil, explosiva e esboçada que essas cenas são animadas demonstra um objetivo claro em mostrar o desespero mental de Jeanne, que sequer forma imagens completas diante de seus olhos. Em uma cena que a cidade toda se embala na magia sexual de Jeanne e faz uma orgia generalizada, o sexo é mostrado como uma viagem surrealista, com homens e mulheres sendo engolidos por animais, projetando luzes, se tornando feras, tudo no intuito de substituir as cenas de uma orgia comum generalizada por algo muito mais profundo e louco, num fluxo frenético de animações de nankin em acetato em alta definição.
O uso de fotogramas extremamente detalhados e compostos pelo ilustrador Kuni Fukai na estética Art Nouveau no longa japonês ajuda a prolongar a ideia de uma realidade momentânea que não tem possibilidade de mudança, como um pesadelo que se arrasta independente do que Jeanne faça. Um bom exemplo desse uso de fotogramas semi-estáticos são frames em aquarela que a face da protagonista é focada durante minutos a fio, apenas com uso de um aumento focal ou zoom.
O que torna Belladonna of Sadness tão excepcional e diferente dos demais pinku eido é sua mistura inovadora (até para a atualidade) de aquarelas, pinturas a óleo e esboços para impulsionar a narrativa. Embora os estilos de animação mudem ao longo do filme, a aparência geral dos personagens e do cenário é extrema e surpreendentemente consistente — exceto por algumas seções particularmente psicodélicas que definitivamente parecem ter sido feitas para desenhos animados mainstream de sábado de manhã dos anos 70. O uso de técnicas diversas de animação sempre confere metáforas visuais claras aos estados mentais da protagonista, que tem extremos de dor e prazer durante o longa.
3.2.2 — SEXO COM O DIABO
A mulher não é vista na cinematografia mainstream como um ser portador de desejo, e, sim, como um objeto de desejo: quando as mulheres têm poder sobre si, fica muitas vezes subentendido que ela é uma inocente provocada, não há vontade própria ou livre arbítrio quando fala-se dessas mulheres no cinema. Daí vem o grande “inimigo”: o diabo.
O diabo, demônio, oni, ou “a criatura” vem nas duas narrativas como uma forma de materializar a principal metáfora de resposta ao sofrimento das personagens — como se o sofrimento fosse tamanho que o corpo parasse de responder por si só — a autonomia, individualidade e o controle são mentiras em um mundo onde o medo profundo reina.
Esse ser imaginário e mítico é uma manifestação física das necessidades psicológicas mais obscuras das personagens. No caso de Jeanne, “o pacto com o diabo” não existe de fato: o próprio diabo é para Jeanne ela mesma buscando a verdade sobre sua dignidade e feminilidade (em meio a tanto sofrimento) que causam tanto medo na população da vila que a personagem mora. O ser de Possession (Andrzej Zulawski, Germany, 1981) torna-se, conforme a narrativa se desenvolve, uma criação imaginária e letal para o casal Mark e Ana, que buscam uma vida que nem um, nem outro pode fornecer. Ana buscava um marido que fosse enérgico e lhe desse o mínimo de apoio pessoal para que ela conquistasse sua autonomia, enquanto Mark buscava na professora de seu filho “a esposa e mãe perfeita”.
O sexo com o demônio ou figuras demoniacas vem nos dois longas como meio de alegoria e blasfêmia, simultaneamente. O cinema é um meio público e opera com cercas de censura que muitas vezes não são apenas estatais, são clericais também. A religião guia os seres humanos em seus extremismos através do medo, da fome ou do comércio, daí vem o medo de antagonizar com essas autoridades religiosas em muitas sociedades.
Na sociedade feudal de Belladonna of Sadness, fica evidente o controle da igreja junto à nobreza. Em Possession, Heinrich, o amante de Ana, é obcecado por Deus e uma moral perfeita inalcançável e acaba influenciando Ana nesse aspecto.
Quarenta e um anos após o lançamento de Possession nas salas de cinema, a cena de Ana transando com a criatura ainda choca, não só pelo tabu do ato sexual sendo visto em uma tela, como também pelo fato de que a figura demoníaca inspira repulsa a partir de conceitos católicos sobre o mal que são difundidos e normalizados na sociedade. Para Amos Vogel, em seu livro Film as a Subversive Art (1974, p.192): “O medo do contágio é também o medo de cair em tentação”.
O “problema” para a igreja em retratar a heresia em filme vem porque a narrativa tende a despertar simpatia “indevida” por personagens imorais, como a própria Jeanne que é vista como uma bruxa e meretriz na vila. Por essa criação de um personagem carismático e ambíguo, a blasfêmia religiosa é hoje um dos meios mais difundidos de transgressão cinematográfica no terror.
3.2.3 — FLUIDOS CORPORAIS E O TABU VISUAL
Os fluidos do corpo, seja esse corpo humano ou não, sempre inspiraram certa rejeição visual. Seja ovos, saliva, leite, sangue, menstruação, pus ou semen, o tabu primitivo permanece: esses fluidos trazem ao espectador idéias subconscientes e primordiais sobre o nascimento e a morte, nosso primeiro e último segredo. Ver esses itens numa tela desmistifica a vida, os órgãos e as excreções.
O homem contemporâneo vê as representações imagéticas cinematográficas como itens idênticos à realidade dentro de seu momento contemplativo tal qual faziam os homens pré-históricos com seus desenhos de feras nas paredes de suas cavernas, daí vem a impressão atávica que o objeto de observação possui poderes mágicos, e todos aqueles que os representam ou maculam merecem a punição.
Em Possession o uso de efeitos práticos vem para auxiliar na transgressão visual dos fluidos corporais. A cena icônica onde Ana se desespera no metrô numa dança enlouquecida de fúria, confusão e angústia, seguida de um vômito onde a personagem expele pela boca ovos, leite e sangue: as principais excretas ligadas à maternidade e às fêmeas na natureza. As mulheres são tão frequentemente lidas como seres temporária ou eternamente impuros que o contato íntimo com uma poderia ser como considerar abraçar a impureza e a poluição visual, vinda do sangue. Essa ideia de impureza provém de séculos de achismos negacionistas sobre o funcionamento anatômico das mulheres. O tabu imagético simplesmente reafirma e reflete realidades subconscientes que permanecem operantes na humanidade.
4- CONCLUSÃO
Nos filmes analisados viu-se a incidência de assuntos extremamente relacionados entre si, como a possessão demoníaca entre mulheres como metáfora, violência sexual, sexo com entidades demoníacas e, para além do conteúdo, a linguagem cinematográfica que se faz de portal para subverter tabus relacionados ao capitalismo, patriarcado e a igreja. Essas obras servem, finalmente, como impulso para os jovens pensadores e cineastas: o medo da punição em falar de assuntos proibidos e tabus não deve ser paralisante, mas motivador.
5 — REFERÊNCIAS
MALUF, Sônia Weidner. Políticas do olhar: feminismo e cinema em Laura Mulvey. Ponto de Vista. Rev. Estud. Fem. 13 (2). Ago 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2005000200007
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu, 1ª edição, São Paulo, Lafonte, 2020.
FREELAND, Cynthia A. (1996). Feminist frameworks for horror films. In David Bordwell Noel Carroll (ed.), Post-Theory: Reconstructing Film Studies. University of Wisconsin Press. pp. 195–218. https://philpapers.org/rec/FREFFF
Possession. Dirigido por Andrzej Zulawski, Produzido por Marie-Laure Reyre, Alemanha, França, 1981, Assistido em mubi.com
A morte do autor. EDTL, 2018. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/morte-do-autor#:~:text=Este%20conceito%20%5Bmorte%20do%20autor,sujeito%20ou%20consciência%20do%20conhecimento. Acesso em 26 de novembro de 2022.
Belladonna of Sadness, Dirigido por Eiichi Yamamoto, Produzido por Mushi Production, Japão, 1973, Assistido em youtube.com
VOGEL, Amos. Film as a Subversive Art. Random House New York. 1974.