Metropolis — mitos e arquétipos
1- Introdução
Tendo-se em vista o contexto do projeto estabelecido, a ideia proposta presente vem da minha recém-nascida obsessão e atração pela visão obscura, humana e hermética do cinema Expressionista Alemão, desde o início das aulas da atual matéria.
Dentro do movimento artístico citado, dá-se o enfoque às obras executadas e aos ocorridos do período de 1921–1929, onde se pode visualizar a presença forte, clara e bastante ontológica de Fritz Lang. E, não apenas nessa época, como de 1929 para frente, o austríaco mostrou-se pioneiro no que muitos autores, seus contemporâneos, nem sequer tentaram fazer: Lang não enterrou seus assuntos motivadores no início de sua carreira, marcada pelo experimentalismo visual, quando ainda não era de fato reconhecido, para que esses motivos fossem desenterrados por críticos e fãs ao decorrer dos anos futuros de sua longa e densa carreira. Dessa maneira, pode desenvolver sua obra cinematográfica com coesão e integridade, vinculando tendências e bases, tanto psicológicas quanto ocultistas, especialmente as bases levantadas pelos psicólogos Sigmund Freud e Carl Gustav Jung sobre ideias primárias e secundárias acerca do subconsciente coletivo.
Lang manteve-se fixo nesses mesmos padrões, no entanto, sempre aprofundando e dando enfoque à epistemologia de seus temas e analogias gráficas: a loucura e a pobreza das multidões, a beleza física do corpo e caráter, a culpa inerente humana, os poderosos (representados na maior parte das obras por ícones presentes no ocultismo e arquétipos), e as máscaras psicológicas impostas pelo ego, sempre simbolizando as ideias inatas sociais do ser.
Nesse trabalho, o foco será na presença dos mitos, arquétipos e padrões psicológicos, visuais e epistemológicos no que é visto como a era épica do Expressionismo Alemão (1921–1929) na obra de Fritz Lang, mais especialmente em Metrópolis, universo criado pela roteirista Thea von Harbou e adaptado com fidelidade pelo cineasta em questão.
1- Desenvolvimento
Dentro da psicologia, vê-se, utilizando métodos analíticos, a existência do inconsciente coletivo, conceito criado pelo psiquiatra Carl Gustav Jung. Para Jung, o inconsciente coletivo é a camada mais profunda da psique. Este é constituído pelos fatos, lembranças e mitos que foram herdados de cada geração passada, e é nele que residem os conceitos humanos gerais, tais como imagens virtuais, que seriam comuns a todos os seres humanos. O inconsciente coletivo também tem sido compreendido como uma fusão oculta de arquétipos e fundamentos cujas influências se expandem para além da mente humana. Jung via essa expansão clara através do ocultismo e tradições, tanto ocidentais quanto orientais, como, por exemplo, seu estudo aprofundado sobre os arquétipos no Tarô de Marselha, abordado em “O homem e seus símbolos” (1964).
Platão definia arquétipos como modelos fixos dos objetos, que estabelecem uma fusão entre a visão suprema, do divino, ligada à perfeição, e o mundo da matéria, a “realidade”. Enquanto, para Jung, arquétipos são unidades de conhecimento intuitivas arcabouçadas no inconsciente coletivo (algo comum a todos os humanos, a psiquê), que são transmitidos por histórias, lendas ou mitos e se manifestam até mesmo em sonhos, criações artísticas e em todas as produções imaginativas e intelectuais da esfera pessoal singular. É tendo em vista esse enredo sobre os arquétipos e a mente humana, que lembramo-nos de Lang, que sabia como abraçar elementos inatos e inerentes ao ser humano (itens do inconsciente coletivo), e não buscou uma forma simplesmente vista como catártica e fácil de refletir a insignificância do ser humano, mas, voltado ao que é mais importante: sua natureza humana original, aos verdadeiros problemas do homem que já refletiam nossa ancestralidade e consciência por meio de mitologias, semiótica e histórias.
Em Metropolis, esses mitos são abordados de maneira crítica e contundente, fazendo referências a conteúdos heréticos e a livros sagrados, como a Bíblia, a Torá e antigos persas. Metropolis foi, inicialmente, um livro de distopia future noir escrito por Thea van Harbou em 1927, e, sendo um livro, o detalhismo presente tanto no conteúdo e desenvolvimento de personagens quanto no próprio universo proposto foram “melhor usados” que no longa metragem de Lang, mesmo o filme tendo cuidadosamente atribuído os signos da obra original.
Esses detalhes no livro integram os arquétipos de maneira coesa. O filme inicia-se retratando uma atmosfera futurista e obscura onde há uma separação clara entre as classes trabalhadora e elite, enredo esse onde se acentuam as diferenças entre as classes por meio da descrição, inicialmente dualista e “caricata” de duas áreas da cidade. Diz-se “inicialmente”, pois fica claro com o desenvolvimento da obra que o maniqueísmo inicial serve como escopo para o aprofundamento de questões sociais e psicológicas bem mais complexas. Na primeira seção da metrópole a qual somos apresentados, vê-se a área da elite, cercada de beleza idealizada, clareza visual ampla, sofisticação e prazeres, não só físicos, como também virtuais, numa atmosfera descrita como o “Alto dos Céus” por Lang (já fazendo referência bíblica). Essa descrição acentua a ideia de que a elite deve viver em um mundo semelhante ao paraíso sagrado ideal da visão bíblica, onde são vistos como deuses, ou, ao menos, merecedores de toda essa riqueza, desfrute e deleite. Nessa cidadela, há um jardim que também representa uma semiótica paradisíaca quase babilônica, onde roupas, atmosfera e comportamentos excêntricos mostram a elite como sendo uma classe privilegiada e magnânima. Nos ambientes descritos no longa metragem, pode-se notar que são alegorias para ao “grandes arquétipos” junguianos, nesse caso, representados como Persona, Sombra, e Self. Nessa atmosfera rica apresentada na elite do filme inicia-se a ótica dos arquétipos citados: sendo esse jardim tão abundante e surreal, beirando ao divino (em alguns momentos quase de maneira canastrona), vê-se a criação da metáfora da Persona: originalmente, Persona significa a máscara que é usada por um ator, o que lhe permite compor um personagem diferente numa peça, e outra, e assim consequentemente. O arquétipo da Persona permite à pessoa a possibilidade de compor um personagem, com características e comportamentos, tudo sob controle. Refere-se ao que é esperado socialmente da pessoa e como ela acredita que deve se mostrar. Além disso, trata-se de um “acordo” entre a pessoa e a sociedade, logo, indica como ela deseja ser vista e tratada, por consequência. Tudo o que se faz voltado para o exterior diz respeito ao arquétipo da Persona: a postura pessoal, a forma de vestir-se, as marcas registradas de comportamentos idealizados (vide comportamentos exóticos vistos na elite de Metropolis). É o modo como se absorve a regra social (o status imposto na atmosfera nobre) e como se lida com esta. É, dessa maneira, resumida a grande preocupação humana de querer sempre “parecer” antes “ser”. Com isso, parte da verdadeira personalidade fica posta de lado, quando o Ego passa a se identificar unicamente com o arquétipo da Persona que se quer viver, em função do que é chamado status quo (“o estado natural das coisas”), deixando de lado os outros aspectos da verdadeira personalidade. O indivíduo torna-se alheio à sua real natureza e origem, como o que é mostrado no jardim de Lang. São caracteres de um ambiente e estilo de vida idealizados, virtuais e falsos, que não competem com as reais necessidades e atributos do ser, ser esse representado pela cidade completa de Metropolis no longa. Com o subdesenvolvimento das demais sessões da personalidade (sociedade de Metropolis), há a geração de uma tensão, que resultará no desencadeamento de angústias e inquietações vitais e reais vindas do âmago do ser/sociedade (como será apresentado a seguir). Essas partes rejeitadas compõe outro arquétipo no ser, chamado Sombra. A necessidade humana de segurança, afeto e reconhecimento social são as razões que fazem com que se elabore um modelo original, esses mecanismos do comportamento humano, que são elementos primordiais e estruturais da psique humana como um todo, conforme citado anteriormente.
No jardim somos apresentados ao jovem protagonista Freder (que possui uma postura semelhante à de Cristo no desenvolvimento do filme), filho do sr. Fredersen, tecnocrata influente e fundador/gestor de Metrópolis. Freder é lido, em Jung, como o arquétipo claro do herói, até mesmo por sua referência ao Cristo. Esse arquétipo declara uma pessoa como alguém que vence (ou tenta ao máximo vencer) seus objetivos, sendo subjugado, para, no final, sobrepujar-se sob o mal maniqueísta apresentado no contexto: esse modelo junguiano habitualmente trata-se de uma personagem virtual determinada a esconder sua Sombra (males sociais da personalidade) para que haja o equilíbrio da sociedade em que está inserida.
Sr. Fredersen, o pai de Freder, é lido como a figura paterna dualista e suprema: autoritária, porém, protetiva e cheia de si, seguro, basicamente, a representação do Demiurgo: ele está intimamente relacionado a uma ideia de “Ser Supremo” (o demiurgo gnóstico, criador e governante do plano material inferior e imperfeito, onde o pecado e o sofrimento prevalecem), pois está no controle de toda a cidade e supervisiona tudo de sua torre, que não por acaso é nomeada “Torre de Babel” no filme. Na passagem original do Gênesis, mestres têm a ideia de construir uma torre que alcance as estrelas, mas os mestres não conseguem construí-la em vida e contratam pessoas para construir a torre. No entanto, os trabalhadores não sabiam o plano dos mestres e, “Os hinos de louvor de um homem tornaram-se maldições de outros homens”. Esta história está diretamente relacionada a como Metrópolis surgiu e se mantém: as condições contrastantes da parte operária e da elite tornam compreensível para o espectador o porquê de eles não saberem se comunicar.
Durante a primeira parte do filme o jovem Freder projeta sobre seu pai uma imagem de grande homem. Ela o admira e procura imitá-lo. Depois, quando seu pai começa seu plano de sabotagem contra os operários, esta imagem fica prejudicada. Ele tem diante de si um pai fraco e culpado que merece ser punido e não o é. O desprezo neste momento poderá deslocar a antiga “super estima infantil” do jovem. O pai volta para ele de cabeça baixa e seu filho o observa de longe, hostil, no restante do filme, até sua final redenção. Tornar-se homem é uma tentativa de desligamento desta identificação com seu adulto “maior” para passar à identificação com o seu eu.
No ambiente operário (a Sombra arquetípica), vivem os trabalhadores, numa atmosfera caracterizada pela escuridão, fuligem, desespero, onde o tempo é regrado e o trabalho nocivo e abusivo a “única” maneira de vida para os habitantes, que se desumanizam através da repetição quase maquinaria dos serviços da fábrica, onde não há reconhecimento do valor e a dignidade do homem, considerando sua natureza, limites, interesses e potenciais. Os trabalhadores vivem nesse ambiente, subterrâneo à elite, onde não há luz solar e vive-se em meios sem excentricidade. Os operários estão normalmente vestidos com roupas escuras e sujas, idênticas, cabeças raspadas baixas devido ao cansativo dia de labuta, que os retrata como vivendo em um mundo deprimido, semelhante a um círculo do inferno dantesco. Nesse local, há a fagulha de esperança necessária para o desenvolvimento do enredo: da mesma maneira consequente à relação pai-filho (Freder e Fredersen) citada anteriormente, somos apresentados a um arquétipo semelhante com a primeira identificação exercida sobre a mãe. Maria é a próxima personagem a ser analisada. Maria, como o próprio nome refere, é uma óbvia alegoria bíblica a maternidade e virtude. Lang descreve, nos discursos emocionados de Maria, que deve haver um mediador entre a elite e os operários se eles quiserem se unir, eliminando, dessa maneira, a tormenta na vida da população. Utiliza-se o simbolismo para transmitir a mensagem de que o mediador entre a cabeça e as mãos é o coração. Freder se apaixona por Maria a primeira vista no jardim. Fritz (que era judeu) manipula o fato de Maria ser “Filha pura de Deus” e, ao mesmo tempo, “Mãe de Jesus Cristo” e a “Voz do Espírito Santo”, une, assim, as três Pessoas da Santíssima Trindade em uma só: o filho que se apaixona pela mãe (Freder e Maria), em uma situação incestuosa, blasfema, perversa e herética. Freder a encontra no subsolo. Nessa chegada, há um momento de alucinação da personagem, que visualiza a deidade pagã Moloch: na fábrica há um complexo industrial infernal onde deve-se realizar tarefas desumanizadoras, em um certo momento, a máquina se compara a Moloch na visão alucinada de Freder, onde o trabalho e a manufatura são, de fato, a ancestral divindade amonita honrada com os sacrifícios humanos, os trabalhadores alimentam assim a besta num ritmo desenfreado e cruel. Nesse momento do filme, cabe a análise sobre o cansaço e a pobreza como ferramentas de manobra do povo, que é representado como um rebanho, impossibilitado de agir e fazer decisões por si só, tal qual o estudo do cientista político Walter Lippmann, de 1921.
Freder se encontra nesse momento, mais que nunca, em seu “papel” de herói: num dos discursos da moça, ele se dá como mediador entre a elite pensadora e os trabalhadores, disposto a ser a voz e ação das massas.
Tendo em vista a problemática ocultista contida no livro de Thea von Harbou relacionada ao Maschinenmensch (robô, falsa Maria, Hel) criado por Rotwang (que possui a mão esquerda metálica, fazendo uma referência provável ao caminho ocultista da mão esquerda), nota-se que o trabalho de Rotwang expõe as mais novas tecnologias aparentemente a favor da elite pensadora, e muitos signos no filme mostram que o cientista também utiliza do antigo conhecimento ocultista para criar seus artefatos. Em seu porão possui uma porta oculta que conduz a masmorras ancestrais, aludindo, desse modo, às fontes antigas e misteriosas de sua pesquisa. No hall principal de sua casa há um pentagrama que se refere aos pitagóricos (os discípulos de Pitágoras fixavam um pentagrama em suas portas) como um sinal secreto de mútuo reconhecimento ao ocultismo de mão esquerda. Rotwang ainda é visto em Jung como o arquétipo do trapaceiro (caos numa ótica ocultista), aquele que induz a violação de regras pré-estabelecidas para mostrar até que ponto as leis que moldam o ambiente social são vulneráveis e podem ser mudadas, para que haja a interrogação sobre o mundo. Habitualmente esse modelo psicológico se opõe ao Herói (representado por Freder) através de paradoxos e torturas.
Em Metropolis, mais que em qualquer longa de ficção ocidental, há a alusão imediata a ensinamentos herméticos, como o clássico selo hermético de Salomão, que representa graficamente o conceito de “Assim como é acima, é abaixo”, representando como os opostos se refletem entre si para alcançar o equilíbrio e comunicação perfeita.
3 — Conclusão
O psicólogo Carl Gustav Jung tentou fornecer uma explicação lógica e objetiva a esta misteriosa internalização de conceitos da história e mitologia humana e da sobrevivência instintiva guiada por um objetivo comum: nisso, pode-se afirmar que o objetivo e sentido humano é que move, guia, condiciona à luta e motiva. Esta série de mitos e desenvolvimentos descritos nos genes e estudados pela antropologia, etnobiologia, sociologia e psicologia, justifica o conceito de que diante de uma obra artística, uma fonte de abstração muito elevada, pode-se identificar-se totalmente, com apreço e fulgor ou, pelo contrário, sentir um ódio inexplicável por essa obra. Jung conseguiu estabelecer o conceito de subconsciente coletivo com exatidão e profissionalismo para relatar esta série de histórias universais contadas ao longo da humanidade com fidelidade para criar o modelo de arquétipo descrito, fonte de todo criação existente no mundo, imagético e palpável. Fritz Lang, como outros diretores como o britânico Hitchcock, trabalhou com esses conceitos de forma delicada e contínua, não como algo internalizado e subjugado, mas analítica e objetivamente falando.
Em Metropolis, pode-se apreciar a marca e tentativa do austríaco Lang em elevar essas ancestralidades e imagens mentais universais de maneira constante em sua obra: o amor traz tudo, inclusive a morte, a identificação inevitável com seus heróis e anti-heróis, a tentativa de homem para se tornar Deus com suas consequências inevitáveis e trágicas ou fortes ideias e sentimentos como traição, saudade, ciúme ou vingança, todos eles presentes para ao longo de seu trabalho profundo e pioneiro. Toda essa labuta incalculável e dedicada foi executada depois de passar por duas guerras mundiais, duas fugas, uma dúzia de países em continentes diferentes, um regime totalitário, uma caça por bruxas e um ostracismo final que não prejudicou seu ímpeto nem dividiu sua sede pela arte do cinema.
Referências
PSICANÁLISE CLÍNICA, REDAÇÃO (2020), Lista de Arquétipos: os 8 arquétipos para Jung, Disponível em: < https://www.psicanaliseclinica.com/lista-de-arquetipos/#:~:text=Carl%20Gustav%20Jung%20era%20um,expressão%20do%20nosso%20inconsciente%20coletivo. > Postado em 08 de fevereiro de 2020. Acesso em 12 de outubro de 2020.
PSICONLINEWS, (2016), Os arquétipos segundo Jung, Disponível em < https://psiconlinews.com/2016/12/os-arquetipos-segundo-carl-gustav-jung.html > Postado em 25 de dezembro de 2016. Acesso em 12 de outubro de 2020.
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JUNG, CARL GUSTAV (2002), Los arquetipos y lo inconsciente colectivo, Madrid, Ed. Trotta.
SCHAEFER, DENNIS (1998), Maestros de la luz, Madrid, Plot Ediciones.
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